Rio de Janeiro, 6 de março de 2020.
Informativo sobre o Projeto de Lei n° 1179 de 2020, do Senado Federal, de autoria do Senador Antonio Anastasia (PSD/MG), que dispõe sobre o ‘Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET)’ no período da pandemia do Coronavírus.
O Senado aprovou na última sexta-feira, 3 de abril de 2020, regras para flexibilizar relações jurídicas privadas durante a pandemia de coronavírus. A proposta segue agora para a Câmara dos Deputados.
É consequência inevitável desse ambiente excepcional e transitório que diversas relações contratuais, societárias, de família e de outros ramos do Direito Privado sejam fortemente abaladas com a superveniência dos fatos decorrentes da pandemia.
Dado o caráter emergencial da atual crise, a intenção é criar regras transitórias que, em certos casos, suspendam, temporariamente, algumas exigências legais.
O Senado considerou que é dever do Parlamento brasileiro (assim como Parlamentos de diversos países vêm fazendo), como protagonistas na garantia de segurança jurídica e na realização dos fins superiores da República, elaborar e oferecer à sociedade normas que consigam dar segurança jurídica, estabilidade, previsibilidade às regras de Direito Privado, no curso desta fase excepcional, que desafia as estruturas normativas preexistentes.
A elaboração de normas emergenciais tende a controlar o efeito cascata da crise econômica no ambiente de negócios e evitar a quebra em cadeia de contratos. Evitar o “ninguém paga ninguém” e atenuar as consequências socioeconômicas da covid-19, de modo a preservar contratos e servir de base para futuras decisões judiciais.
O Projeto trata de diversas áreas do direito privado, mas questões tributárias, administrativas, de natureza falimentar ou de recuperação empresarial não foram incluídas, devendo ser tratadas por outros projetos em andamento no Congresso Nacional.
Quanto aos contratos de locação em geral, o texto final do projeto do Senado não versou sobre as locações comerciais, apesar de haver propostas de emendas nesse sentido.
No que diz respeito aos contratos de locação residenciais, o projeto previa originariamente que se o inquilino fosse demitido ou tivesse o salário reduzido por causa da pandemia poderia atrasar o pagamento do aluguel, assim::
Art. 10. Os locatários residenciais que sofrerem alteração econômico-financeira, decorrente de demissão, redução de carga horária ou diminuição de remuneração, poderão suspender, total ou parcialmente, o pagamento dos alugueres vencíveis a partir de 20 de março de 2020 até 30 de outubro de 2020.
- 1° Na hipótese de exercício da suspensão do pagamento de que trata o caput, os alugueres vencidos deverão ser pagos parceladamente, a partir de 30 de outubro de 2020, na data do vencimento, somando-se à prestação dos alugueres vincendos o percentual mensal de 20% dos alugueres vencidos.
- 2° Os locatários deverão comunicar aos locadores o exercício da suspensão previsto no caput.
- 3º A comunicação prevista no § 2º poderá ser realizada por qualquer ato que possa ser objeto de prova lícita.
Mas na proposta aprovada – um substitutivo elaborado pela relatora, Simone Tebet (MDB-MS) – suprimiu-se a possibilidade de suspensão do pagamento dos aluguéis residenciais.
Durante a tramitação, diversas emendas foram sugeridas ao texto original, como, por exemplo, permitir apenas suspensão de metade do valor dos aluguéis.
Essa solução salomônica propunha dividir, com equilíbrio, os transtornos dessa pandemia entre as partes dos contratos de locação residencial. De um lado, o inquilino, para preservar o seu direito à moradia, poderia continuar no imóvel pagando, ao menos, metade do valor do aluguel e parcelando o restante em seis parcelas.
De outro lado, o locador, que, muitas vezes, depende do valor do aluguel para sobreviver, receberia metade do valor do aluguel agora e, depois, com juros remuneratórios de 0,5% ao mês, receberia o restante em seis parcelas.
Ponderou-se que essa solução estaria em sintonia com o art. 916 do Código de Processo Civil, que prevê que todo aquele que se torna réu em um processo de execução tem o direito de parcelar a dívida em seis parcelas, com juros de 1% ao mês e correção monetária, após pagar uma entrada de 30% (trinta por cento).
No entanto, no texto final, o art. 10 originário foi suprimido sob entendimento de que criava uma presunção absoluta de que os inquilinos não teriam condição de pagar os aluguéis e por desconsiderar que há casos de locadores que sobrevivem apenas dessas rendas.
O Senado entendeu que o ideal é deixar para as negociações privadas esse assunto, com a lembrança de que o ordenamento jurídico já dispõe de ferramentas para autorizar, a depender do caso concreto, a revisão contratual, a exemplo dos artigos 317 e 478 do Código Civil[1], ou de dispositivos específicos da Lei do Inquilinato.
Considerou-se que:
“A proposição poderia ter adotado o caminho da moratória geral dos contratos, dilatando prazos e restringindo direitos dos credores. Esse caminho não foi adotado porque o Direito brasileiro, tanto no Código Civil quanto no Código de Defesa do Consumidor, já possui mecanismos muito eficientes para permitir a revisão judicial dos contratos. O projeto orienta-se para impedir que haja uma ampla judicialização por uso indevido da pandemia como uma cláusula geral de liberação dos deveres das partes.”
“A pandemia é o clássico exemplo do que dispõe o art.393 do Código Civil. Ocorre, porém, que ela não pode ser utilizada para obstar o cumprimento de obrigações firmadas em contratos anteriores a 20 de março de 2020, marco escolhido neste projeto para delimitar objetivamente o início dos efeitos jurídicos da pandemia. Esse é o objetivo explícito do art. 6º do projeto, quando nega qualquer eficácia retroativa à pandemia. Busca-se evitar, assim, uma explosão de demandas atuais por dívidas pretéritas, favorecendo-se comportamentos oportunistas em tempos de crise. Além disso, a ocorrência da pandemia não pode ser usada, de modo generalizado, para desonerar as partes de suas obrigações. Há diferentes efeitos da pandemia em cada relação contratual, o que pode inclusive não se enquadrar totalmente no conceito de caso fortuito. Caberá à Justiça avaliar se houve ou não essa incidência direta nas relações jurídico-negociais impugnadas.”
O texto do Projeto 1179/2020 aprovado no Senado impede, no entanto, a concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo até 30 de outubro de 2020, sob o seguinte fundamento:
“Essa regra justifica-se porque, nesse momento atual de restrição de circulação de pessoas, fica muito difícil que uma pessoa seja desalojada e consiga um outro local para alugar. Entendemos, porém, que a proibição da liminar não deve perdurar até o final do ano. Preferimos antecipar essa proibição para 30 de outubro de 2020, data que tem sido usada como parâmetro na lei como marco final dessa fase de excepcionalidade.”
A proibição só é válida para ações protocoladas a partir de 20 de março.
O texto ficou assim redigido, relativamente aos contratos de locação:
Art. 1º Esta Lei institui normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado em virtude da pandemia do Coronavírus (Covid-19).
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se 20 de março de 2020, data da publicação do Decreto Legislativo nº 6, como termo inicial dos eventos derivados da pandemia do coronavírus (Covid-19).
Da Resilição, Resolução e Revisão dos Contratos
Art. 6º As consequências decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos.
Das Locações de Imóveis Urbanos
Art. 9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020.
Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo aplica-se apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020.
A previsão de irretroatividade dos efeitos visa evitar o oportunismo que exsurge nesse momento. Ademais, não faria sentido aplicar efeitos retroativos diante de uma pandemia (considerada força maior ou caso fortuito) antes dos efeitos desta se produzirem, pois, como previsto no art. 393 do Código Civil[2], caso fortuito e força maior são acontecimentos supervenientes à celebração do contrato[3].
Sergio Sahione Fadel Advogados Associados
[1] CC. Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.
[2] CC. Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
[3] Caso fortuito e força maior: acontecimento superveniente ao contrato, imprevisível e insuperável pela vontade do devedor e que lhe cause prejuízo relevante. Fatores externos e de grande espectro autorizam a resolução por onerosidade excessiva. Fatores específicos à situação das partes não. A repentina redução da capacidade econômica da parte não autoriza a resolução, ou todas as relações contratuais estariam sob risco.